Do
amor a desconfiança. Da família o medo, a vergonha. Dos amigos a indiferença.
Era assim que se sentia naquele domingo chuvoso. Acordou, e não teve a mínima
vontade de se levantar.
A
chuva caía fina, seu barulho encantava. Sua sutileza ao molhar a terra
escondida pelo progresso. Não se levantou. Nem mesmo quanto o telefone tocou.
Atendeu ali mesmo, na cama.
Os
sentimentos passavam por sua mente, desaguavam em seu coração e a sensação de
desaparecer se tornava mais forte.
Àquela
altura já não tinha mais forças para continuar. Já não sabia como continuar. A
vida havia vencido o jogo. Tudo que estava a seu redor parecia uma grande
mentira. Tentou mudar e não pode. Tentou mudar mas não conseguiu. No fundo
sabia que nunca conseguiria, mas insistia em acreditar em seu coração.
Àquela
altura, nada mais do que acreditava era real. Tudo era uma grande mentira.
Havia criado um mundo onde o amor estava ali, onde a família não se
envergonharia, onde seus amigos eram verdadeiros, eram sinceros. Criou um mundo
onde tudo o que lhe rodeava era sincero e verdadeiro e eterno.
Nunca
imaginou que chegaria a esse ponto. No entanto não sabia como havia chegado
ali. Pensava e pensava e não chegava a lugar nenhum. Não sabia ao certo onde
havia se perdido. Não sabia onde havia desviado seu caminho. Em que espelho
havia ficado sua verdadeira face.
Olhou-se
no espelho. Olhou cada parte, cada detalhe de seu rosto. Imaginou como teria
sido se não houvesse errado tanto. Imaginou como estaria se tudo fosse
diferente. Lembrou-se da primeira vez que uma lágrima lhe escorreu o rosto, por
amor.
A
água escorria e apenas caía pelo ralo. Pensou no presente de natal. Pensou em
todos os momentos felizes. Pensou em como tudo aquilo poderia continuar. Havia
um mundo em sua mente. Havia um mundo em seu coração.
Havia
um mundo onde tudo era como queria. Onde todos eram aqueles que acreditava que
era. Mas a vida lhe dava tapas na cara. A vida lhe fez acordar. O jogo estava
perdido.
Caminhou
pela casa. Não estava só. No entanto não notou nenhuma daquelas pessoas. Na
cozinha, viu a pequena faca que lhe acompanhou em todas as suas descobertas
gastronômicas. Ela havia cortado de tudo. Sua lâmina lisa e firme, seu aço
forte e cortante havia visto de tudo.
Uma
gota de sangue escorreu.
Viu
a prateleira onde estava a faca ficar inundada em sangue. Fechou os olhos e,
por um instante, pode ver aquela velha companheira em seu peito. Cravada ali,
entre suas costelas, penetrando seu coração.
A
vida havia ganho o jogo. Nada mais era importante, mas naquele momento pode ver
cada uma daquelas pessoas. O cheiro do peixe cozido apareceu. Seus sentidos
estavam mais fortes do que nunca.
A
faca permanecera parada o tempo todo. Sua imaginação lhe fazia voar por um
mundo distante. Fechou os olhos e se viu em sua cama. Estava novamente lá,
embaixo das cobertas que lhe protegiam de todo mal. Estava novamente em seu
mundo.
A
faca permaneceu intacta na cozinha. O silêncio acabara. As pessoas eram
visíveis. O cheiro do peixe cozido era forte. Na boca, o gosto de sangue. O
gosto amargo da vida.
Não
ia se abater tão fácil. O jogo estava perdido, mas algo lhe dizia para
continuar. Faltou-lhe coragem de acabar com tudo. Lágrimas escorreram em seu
rosto.
Sentiu
o gosto salgado da vida. Fechou os olhos. A imagem da velha companheira cravada
em seu peito voltou. Não teve dúvidas, levantou-se, lavou o rosto, e retomou
sua caminhada.
Em
algum momento encontraria o caminho do qual se desviara. Em algum momento
voltaria a ser como antes. Olhou-se no espelho. Pensou.
Uma
lágrima escorreu. A última. Seu mundo havia desaparecido. A realidade estava
ali, diante de seus olhos. Nada daquilo havia existido. Do amor, a
desconfiança. Da família, o medo e a vergonha. Dos amigos, a indiferença. Esse
era o mundo real. Esse era o seu mundo.
A lágrima
percorreu seu rosto. A morte. A realidade. Uma última lágrima para a vida. Uma
última lágrima para tudo. O retorno ao mundo real. A busca pelo seu verdadeiro
caminho. Em busca do verdadeiro eu.
Lavou
em fim seu rosto. Pensou no jogo perdido. Não chorou. Viveu. O medo. A
indiferença. A desconfiança. A morte. Tudo e nada, a ser enfrentado.
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