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domingo, 13 de janeiro de 2013

à propos de la mort


Do amor a desconfiança. Da família o medo, a vergonha. Dos amigos a indiferença. Era assim que se sentia naquele domingo chuvoso. Acordou, e não teve a mínima vontade de se levantar.

A chuva caía fina, seu barulho encantava. Sua sutileza ao molhar a terra escondida pelo progresso. Não se levantou. Nem mesmo quanto o telefone tocou. Atendeu ali mesmo, na cama.

Os sentimentos passavam por sua mente, desaguavam em seu coração e a sensação de desaparecer se tornava mais forte.

Àquela altura já não tinha mais forças para continuar. Já não sabia como continuar. A vida havia vencido o jogo. Tudo que estava a seu redor parecia uma grande mentira. Tentou mudar e não pode. Tentou mudar mas não conseguiu. No fundo sabia que nunca conseguiria, mas insistia em acreditar em seu coração.

Àquela altura, nada mais do que acreditava era real. Tudo era uma grande mentira. Havia criado um mundo onde o amor estava ali, onde a família não se envergonharia, onde seus amigos eram verdadeiros, eram sinceros. Criou um mundo onde tudo o que lhe rodeava era sincero e verdadeiro e eterno.

Nunca imaginou que chegaria a esse ponto. No entanto não sabia como havia chegado ali. Pensava e pensava e não chegava a lugar nenhum. Não sabia ao certo onde havia se perdido. Não sabia onde havia desviado seu caminho. Em que espelho havia ficado sua verdadeira face.

Olhou-se no espelho. Olhou cada parte, cada detalhe de seu rosto. Imaginou como teria sido se não houvesse errado tanto. Imaginou como estaria se tudo fosse diferente. Lembrou-se da primeira vez que uma lágrima lhe escorreu o rosto, por amor.

A água escorria e apenas caía pelo ralo. Pensou no presente de natal. Pensou em todos os momentos felizes. Pensou em como tudo aquilo poderia continuar. Havia um mundo em sua mente. Havia um mundo em seu coração.

Havia um mundo onde tudo era como queria. Onde todos eram aqueles que acreditava que era. Mas a vida lhe dava tapas na cara. A vida lhe fez acordar. O jogo estava perdido.

Caminhou pela casa. Não estava só. No entanto não notou nenhuma daquelas pessoas. Na cozinha, viu a pequena faca que lhe acompanhou em todas as suas descobertas gastronômicas. Ela havia cortado de tudo. Sua lâmina lisa e firme, seu aço forte e cortante havia visto de tudo.

Uma gota de sangue escorreu.

Viu a prateleira onde estava a faca ficar inundada em sangue. Fechou os olhos e, por um instante, pode ver aquela velha companheira em seu peito. Cravada ali, entre suas costelas, penetrando seu coração.

A vida havia ganho o jogo. Nada mais era importante, mas naquele momento pode ver cada uma daquelas pessoas. O cheiro do peixe cozido apareceu. Seus sentidos estavam mais fortes do que nunca.

A faca permanecera parada o tempo todo. Sua imaginação lhe fazia voar por um mundo distante. Fechou os olhos e se viu em sua cama. Estava novamente lá, embaixo das cobertas que lhe protegiam de todo mal. Estava novamente em seu mundo.

A faca permaneceu intacta na cozinha. O silêncio acabara. As pessoas eram visíveis. O cheiro do peixe cozido era forte. Na boca, o gosto de sangue. O gosto amargo da vida.

Não ia se abater tão fácil. O jogo estava perdido, mas algo lhe dizia para continuar. Faltou-lhe coragem de acabar com tudo. Lágrimas escorreram em seu rosto.

Sentiu o gosto salgado da vida. Fechou os olhos. A imagem da velha companheira cravada em seu peito voltou. Não teve dúvidas, levantou-se, lavou o rosto, e retomou sua caminhada.

Em algum momento encontraria o caminho do qual se desviara. Em algum momento voltaria a ser como antes. Olhou-se no espelho. Pensou.

Uma lágrima escorreu. A última. Seu mundo havia desaparecido. A realidade estava ali, diante de seus olhos. Nada daquilo havia existido. Do amor, a desconfiança. Da família, o medo e a vergonha. Dos amigos, a indiferença. Esse era o mundo real. Esse era o seu mundo.

A lágrima percorreu seu rosto. A morte. A realidade. Uma última lágrima para a vida. Uma última lágrima para tudo. O retorno ao mundo real. A busca pelo seu verdadeiro caminho. Em busca do verdadeiro eu.

Lavou em fim seu rosto. Pensou no jogo perdido. Não chorou. Viveu. O medo. A indiferença. A desconfiança. A morte. Tudo e nada, a ser enfrentado.

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