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quarta-feira, 17 de abril de 2013

o livro, a cruz e o rubi


O tempo é realmente sábio. Os anos, longos demais para uma vida apática. Entrou no trem como de costume, pontualmente às quatro horas, duas estações antes da frequente. Ele já estava lá quando entrou.

O anel com a pedra de cor escarlate brilhava na mão esquerda, observou apenas, e se recostou na parede ao lado da porta pela qual entrara de modo que pudesse observar um pouco mais aquela pedra.

A hora passava devagar. A música tocando suavemente em seu ouvido. O rangido das rodas do trem ao passar velozmente nos trilhos já enferrujados pela história. Pensava na vida e nas coisas que aconteceriam naquele dia. Pensava na história e nos presentes que a vida lhe dava a cada dia. Tudo era tão vazio e triste. A pequena gota de sangue brilhava à luz do sol.

O trem parou e voltou-se à realidade. As marcas da idade em seu rosto. Foi o que lhe chamou atenção na senhora que entrava. Acompanhada por um garoto e um desses carrinhos de compra. Sua veste denunciava, mas não sabia a que horda pertencia.

A cruz de madeira em seu pescoço era única. Diferente de tudo o que já havia visto. Um cristo cravado uma vez mais. A beleza e o sofrimento. A beleza do sofrimento. A vida e a santidade. A morte e a humanidade.

Havia algo em seu rosto. Uma expressão forte, algo entre angústia e serenidade. Anotava algo em sua caderneta azul.

Observou. Pensou. Decidiu escrever.

As marcas no rosto da velha senhora. Os olhos fechados do senhor ao seu lado. Só então percebeu, na camisa branca, por baixo do paletó de tecido grosso, os bilhetes de loteria. E mais uma vez, o vermelho reluziu à luz do sol da tarde. O material. O espiritual.

Em frente àquelas figuras, pensava na sorte, na vida. O trem não estava cheio. Observava tudo ao seu redor. O anel. O cordão. E tudo o mais que, como numa fotografia, faziam parte de uma composição de luz e sombras e, como num livro, formavam capítulos com suas histórias e enredos que se cruzavam naquele momento e instante.

Tudo ali lhe chamava atenção, mas aqueles dois elementos, aqueles dois personagens penetravam na essência do seu ser e tocavam levemente sua alma.

Estava agora diante da porta oposta a que entrara. Por algum motivo não se recordava como havia ido parar ali. Observava a vida passar pelo vidro um tanto embaçado. Histórias passando por sobre os trilhos. Estava ali, quando percebeu a presença do poeta. Havia entrado poucas estações após a velha senhora, e já quando estava na porta oposta a que entrara.

Não o viu entrar, mas o viu acomodar-se ao lado de uma bela moça. Entregou-lhe um livro e lhe dedicou a página 74. Não sabia ao certo o que a moça estava lendo. Não conhecia as palavras daquela caricatura peculiar que entrara no trem e se dizia poeta.

Os bilhetes de loteria no bolso da camisa branca. O amor escrito em prosa e verso. A medalhinha presa à bolsa da velha senhora. A poesia e o amor à beleza. O falso rubi reluzindo ao sol da tarde. O cristo pregado na cruz.

A parada final. Despediu-se daquelas figuras como olhar. Deu adeus àqueles momentos de paz. Às histórias e vidas e versos e prosas. A realidade lhe chamava.